Ontem fui até a Cinemateca prestigiar a exibição do filme Se Trans For Mar, dirigido pela amiga querida Cibele Appes, cujo trabalho acompanho há vários
anos, desde que nos conhecemos nas Oficinas Kinoforum em meados da primeira
década dos anos 2000. Assistir a um filme da Cibele já seria motivo para tornar
a noite de ontem especial, mas, além disso, ver os outros filmes que compuseram
a sessão, e pelo fato de tudo isso ter acontecido na Cinemateca, trouxe mais
alegria ainda a esse momento.
Quando cheguei ao Largo Senador Raul Cardoso, minha primeira
reação, antes de entrar, foi ir até o outro lado da rua e olhar a Cinemateca de
um ângulo mais amplo, vislumbrando a chegada do desfile de memórias que me
atravessa sempre que vou até lá. Trabalhei ali entre 2009 e 2013, quando, por
decisões políticas que até hoje não compreendo, a Secretaria do Audiovisual
resolveu promover uma demissão em massa...
Cinemateca Brasileira: área de projeção externa.
A vida virou-se e revirou-se, busquei outros caminhos, muitas coisas aconteceram, mas sempre que vou até lá todas essas memórias retornam com uma força espetacular. Há quem diga que um espaço como aquele, que outrora já foi o Matadouro Municipal de São Paulo, é capaz de imprimir uma marca profunda em quem o frequenta. No caso, entendo isso não como aquelas marcas com ferro quente que o gado carregava, mas, de outro modo, como um sincero amor ao cinema, à sua preservação, às memórias que ali são preservadas e projetadas. Também há a efervescência das novas descobertas que aquele espaço possibilita, como por exemplo, fazendo uma sessão como a de ontem com vários curtas-metragens de jovens produtores selecionados a dedo. Poesia em estado puro.
Cinemateca Brasileira: cabine de projeção da sala Grande Otelo
O bichinho do cinema me picou, me mordeu... e ainda deixou
um pedacinho para a sobremesa...
Cinemateca Brasileira: projetor 35mm
Ao dizer isso também lembro do Sandro, meu amigo projecionista
da Cinemateca que conduziu ontem a sessão. “Você pode até demorar para vir aqui
na Cinemateca, mas não adianta, a Cinemateca te mordeu, ela morde a gente,
principalmente quando a gente trabalha aqui... já era!”. A gente começou a
conversar e os assuntos não acabavam, entre memórias e composições de ideias
novas... aliás, convido quem não viu, a assistir ao curta Balé Mecatrônico, que
fizemos juntos, visando manter vivo o trabalho que desenvolvemos, naqueles anos em que trabalhamos juntos, período em que trabalhei como gerente daquelas salas de cinema. Clique aqui para assistir no YouTube.
Sandro, o olhar do cinema nos observando atentamente e eu.
Falando um pouco mais do filme da Cibele. Percebo que uma
sementinha imagética, uma fagulha que notei lá no início dos anos 2000, quando
vi as montagens dela pela primeira vez nos filmes das oficinas, essa sementinha
está cada vez mais sofisticada. O que quero dizer com isso? Há momentos de
suspensão nos filmes da Cibele. Há momentos em que somos transportados a uma
dança imagética a qual só podemos ver ali, na tela, não adianta eu tentar
descrever muito em texto... é algo próprio do concatenar das imagens e sonoridades,
algo que mesmo estando aqui na nossa vidinha cotidiana, ao mesmo tempo não
está, um sopro, um suspiro, um sonho. Ela inclusive disse no debate que tem
apostado em uma ideia de cinema sonho. Falamos bastante sobre isso depois da
sessão, dessa potência do sonhar, de como isso está aqui no tecido de nossos
dias, de como é importante o cinema ter coragem de expor isso... e ela reforçou
que para ela é muito importante compor dessa forma.
Cibele Appes e o cinema sonho: em debate da sessão Cabíria
Fazia um tempo que eu não acompanhava de pertinho cada lançamento
dela. Imersa na correria dos dias, tive uma surpresa boa quando ela me mandou o
link do trailer. De alguma forma, seguindo os links, cheguei em outros
trabalhos dela que eu ainda não tinha visto. Nossa Voz Ecoa foi seu último
trabalho que vi com mais detalhes, até compartilhei com a turma da Etec Cepam, em que lecionava à época. Mas depois dessa websérie seguiram-se vários
outros. Vi como seu portifólio está recheado de imagens. Orgulho
ver tudo isso, ver alguém que você acompanha produzindo trabalhos tão bonitos,
tão poéticos e vários deles em parceria com sua irmã e sua mãe, duas queridas e
super talentosas em tudo que fazem.
Isis Appes, eu, Cibele Appes
A memória não diz respeito ao passado, apenas, mas está
atrelada à composição de nosso presente. E as amizades permanecem pulsantes,
mesmo que a gente passe um tempo sem se ver, quando os reencontros acontecem, toda
a força e carinho que temos por essas pessoas voltam. Por isso
foi tão bom ter esses encontros e reencontros ontem.💜
E sobre esse carinho, essa relação afetiva com a Cinemateca,
lembrei-me de um trecho do livro Ver e Poder do Comolli: “Para nós, jovens
espectadores dos anos de 1950 e 1960, as salas de cinema eram nossas salas de
aula, a cinemateca, nossa universidade”. Nos “anos 2000”, a Cinemateca
Brasileira também foi como uma universidade para mim...
Foi no início daquele ano que começamos a redigir as linhas que chegam agora aos leitores. Estávamos em plena pandemia de Covid-19. Naquele momento eu atuava em turmas de ensino médio e em cursos técnicos da Etec Cepam e vivia os últimos meses de meu segundo contrato por tempo determinado na escola.
Esses dois textos, além do que eu já redigi neles, carregam uma vontade de permanecer viva, já que eu administrava a fragilidade inerente ao período pandêmico, imersa em seus múltiplos desdobramentos, tanto pessoais, quanto político-sociais. Esses anos foram agravados (é preciso dizer, não podemos esquecer), por um governo acachapante/destruidor para nosso país, piorando ainda mais a sensação de angústia daqueles dias.
Para muitos de meus alunos, por exemplo, viver aquele período não foi nada fácil... para mim também não foi, mas, de todo modo, busquei permanecer firme, busquei transparecer uma força acolhedora, típica daquela imagem de "porto seguro" que a gente projeta em algo ou alguém quando quer se abrigar, quando quer descansar antes de seguir para as próximas etapas do caminho...
Além disso, eu vivia uma busca ininterrupta por um novo emprego, já que aquele contrato na Etec estava acabando. Concomitante ao envio incessante de currículos, também pleiteava uma vaga no doutorado. Esperava conseguir uma coisa ou outra... para minha alegria, alguns meses e inúmeras entrevistas depois, consegui o tão aguardado "sim", e, em dose dupla: emprego e doutorado!
Retornando ao que dizia sobre o processo de escrita, além de cuidar de meus dois textos, também acompanhei a construção do evento, participei de reuniões com os demais colegas e estive perto, em especial, do processo de escrita dos textos da Anna Julia e do Theo, pois, à época, eram meus alunos de ensino médio na Etec Cepam e também participantes (bolsistas CNPq) da pré-iniciação científica que eu supervisionava. Foi uma experiência intensa e um grande aprendizado, pois, para além de todos os meandros que envolvem o trabalho de um/a professor/a, quando acompanhamos o desenvolvimento dos alunos inseridos em uma turma, no caso deles, tínhamos uma agenda de reuniões que organizou nossas inúmeras conversas. Buscamos imaginar o quê queriam dizer e dialogar sobre como queriam expor, com qual recorte, com quais palavras...
No dia do lançamento a gente sentou na primeira fila, orgulhosos de estarmos ali depois de tanto trabalho. Comentei com eles que achei interessante ver tudo pronto agora, finalizado, publicação no mundo, textos sendo comentados, lançamento feito e lembrar de como foi o processo de feitura: um vai e vem de escritas e reescritas. Longe do ideal romântico que imagina o autor como aquele gênio que escreveu tudo numa sentada, o processo de escrita (ao menos aqui...) requereu um labor persistente, além de uma paciência escultórica, desejosa por compartilhar aquelas vivências e, ao mesmo tempo, ciente da necessidade de adentrar cada palavra, intercalando miradas para a completude do texto, que, por sua vez, encaixavam-se na abrangência da problemática que o livro buscava delinear. Como dizia, é curioso olhar tudo isso agora, rebobinando essa fita, esses frames vitais que vivemos, minuto a minuto, aula a aula, reunião a reunião, página por página, letra por letra...
Theo, eu e Anna Julia :)
Mais de dois anos depois, cá estamos... Há alguns dias aconteceu o evento de lançamento, organizado pelo Instituto de Estudos Avançados, na Faculdade de Educação da USP. Que bom revisitar esse espaço, onde passei alguns bons anos de minha vida, durante o período do mestrado.
Que maravilha rever meus alunos depois de toda a dedicação que investimos nesses textos. E, que curioso, conhecer a Lara pessoalmente... ela dividiu a mesa do evento comigo e só nos vimos pessoalmente nesse dia, pela primeira vez. O mesmo aconteceu com outras pessoas, que se viram pela primeira vez ali no dia 14... sim, vivemos tudo isso... passamos por isso... temos essas memórias e essas vivências para compartilhar...
Natália Gil, Theo, Anna Julia, eu, Lara, Valéria, Ana Laura
Como se já não fosse o bastante tudo que li, vivi e escrevi durante o processo de produção desses textos que agora compõem o livro, o dia do lançamento foi memorável e demandou mais algumas linhas, essas aqui, esse sobrevoo a pensar e a remontar fragmentos.
O ambiente escolar segue em transformação, e, cada vez mais, nós, profissionais da educação, pleiteamos o direito de imaginar, de participar da construção de repertórios e imaginários. Tal pleito, entendo, configura-se como um direito político, capaz de amplificar e solidificar, cada vez mais, o desenvolvimento de nossas vidas e de nosso país, bem como alicerçar as bases para termos cada vez mais segurança e diálogo nas escolas. Sigamos, sonhando e construindo, juntos, esse ambiente escolar, do qual fazemos parte: somos força vital e coletiva de sua transformação.